segunda-feira, 11 de novembro de 2013

Skinwalker


O reflexo do rosto no espelho demonstrava só parte de seu sofrimento. Inchado e avermelhado. Um hematoma roxo circulava o olho esquerdo. Mal podia acreditar que havia acontecido outra vez. Uma lágrima escura manchada pela maquiagem abriu caminho e desbravou seu rosto em uma descida vertical, até que não suportando mais a gravidade despencou em direção a pia branca em que se apoiava.

Estava longe de sua casa, antes, porém, este era seu desejo. Mas percebeu em sua reflexão que este sonho foi a sua ruína física e moral. Não tinha mais estima alguma neste país próspero em que as pessoas se divertem o tempo todo, aparentando não terem problemas. O erro não estava na escolha do país, e sim na do parceiro para sua vida. – Como ele mudou – pensou rapidamente. Não sabia se ele estava usando drogas, só sabia que havia muita bebida envolvida.

Aquele banheiro parecia comprimir e intensificar o seu sofrimento. Após esta curta constatação de sua desgraça, começou a se despir, caminhou até o chuveiro, girou a chave e deixou aquelas gotas frias tocarem seu rosto. A maquiagem ia saindo, sentiu um pouco de dor quando a água entrou em contato com seu olho magoado pela bofetada desferida há poucas horas atrás.

Saiu do chuveiro ainda ouvindo o tamborilar das últimas gotas caindo no chão. Se enxugou e foi para o quarto. Deu graças a Deus por ele não estar ali, devia ter ido beber mais. Era o que melhor fazia nos últimos meses. Olhou pela janela de sua casa e observou por um tempo a tarde de céu nublado que se apresentava. Percebeu nesse instante que um belo cachorro totalmente branco, com um pelo espesso, olhava diretamente para sua janela, como se estivesse observando-a também. Como ele teria entrado em seu quintal? Bem, provavelmente seu marido havia deixado a porta de acesso aberta ao sair.

Desceu para o andar de baixo e abriu a sua porta para espiar pelo gramado e saber se aquele belo cão ainda estava por lá. Não estava mais. Constatou que a porta de acesso estava mesmo aberta e foi até lá fechar para que nenhum outro intruso entrasse sem ser convidado.

 Quando se virou seu espanto foi grande, pois o cachorro estava sentado e olhando para ela, gentilmente. Pôde ver que parecia se tratar de um cão da raça pastor canadense ou suíço, como também era conhecido. O animal não apresentava qualquer agressividade, por isso aproximou-se dele. Ele demonstrou ser dócil, começou a lamber sua mão carinhosamente, e ela afagou sua cabeça e orelhas. Decidiu levá-lo para dentro, o céu começou a escurecer mais ainda e uma grande chuva se anunciou.

Deixou a porta aberta, para o caso de ele querer fazer qualquer de suas necessidades. Pelo menos imaginou que ele escolheria assim. Não tinha qualquer comida de cachorro em casa, seu marido não gostava de cães. Na verdade, não gostava de qualquer animal. Talvez não gostasse nem dele mesmo. Começou a fazer dois bifes na frigideira. O cão branco, ao sentir o cheiro sentou-se perto dela na cozinha e não parava de balançar o rabo, parecia realmente pedir um pouco daquela refeição que instigava seu olfato.

A chuva começou a cair forte. Ela se apressou em fechar as janelas de baixo e as do andar superior. Só ouvia agora o som das gotas batendo forte contra as janelas e o som da frigideira fritando a cheirosa carne. Os dois bifes estavam prontos. Pegou dois pratos, dispôs um filé em cada, pegou um garfo e uma faca, andou até o sofá, sentou-se, ligou a televisão, colocou um dos pratos no chão e tão logo o fez, aquele belo e faminto cachorro se aproximou e devorou a carne em segundos. Ela sorriu e afagou o animal que agradeceu lambendo sua mão. Ela pensou que se ele falasse, provavelmente teria dito alguma coisa em referência a sua boa ação.

O noticiário não estava agradando, só havia reportagens sobre política interna e externa, cotações das moedas, enfim, nada de seu interesse. Olhou para seu mais novo amigo e pensou que ele poderia dormir ali aquela noite, seu marido provavelmente não conseguiria voltar para casa naquela chuva. Bêbado e trôpego como sempre, cairia em alguma sarjeta e só retornaria ao amanhecer. O cachorro se avizinhou um pouco mais e colocou a cabeça sobre os seus pés.

Após alguns minutos, percebeu que o cão pegara no sono. Retirou com cuidado os pés debaixo da cabeça do animal, foi até a geladeira, pegou uma lata de refrigerante, abriu-a e sorveu o líquido por alguns segundos. Quando deu por si o cachorro estava sentado olhando para ela – será que você acordou com o barulho da lata abrindo? – disse para ele. Caminhou até a pia da cozinha pegou um copo, encheu de água da torneira e deu ao seu alvo amigo. Ele deu seguidas lambidas no copo, parou por um segundo ou dois e voltou a lamber. Depois levantou a cabeça olhando para ela com um pouco de água gotejando pelo seu focinho.
Ela voltou ao sofá, ainda seguida pelo canino branco. Ele não tinha qualquer coleira, ou qualquer identificação, por isso ela não sabia como chamá-lo, pensou se alguém o poderia ter soltado na rua, não parecia um bicho perdido.

O telejornal havia acabado e iria começar uma comédia romântica que nada se coadunava com sua situação. O cachorro estava deitado sobre o tapete agora. Orelhas em pé. Dava pra perceber que ele não iria dormir. Com o passar dos minutos o temporal parecia aumentar, o barulho do vento entrando pela fresta da porta era grande e um pouco assustador, mas ela não estava com medo, parecia protegida agora ao lado de seu novo amigo.

Uma sonolência seguiu-se, e aquela bela mulher de cabelos negros e olhos castanhos aconchegou-se no sofá esticando as pernas para um breve cochilo. Ela não esperava o que Morpheus havia guardado para ela naquela noite. Imagens um pouco desconexas de um lugar parecido com uma floresta começaram a se formar em sua mente. Estava caminhando com um vestido preto, rasgado nas pontas. Um leve vento frio foi sentido por ela e aquela peculiar sensação de medo que nos acomete em sonhos se abateu sobre ela. Foi quando ela escutou um uivo de lobo, seguido por vários outros. Poderia afirmar que nunca sentira tanto medo como naquele instante. Aproximou-se de uma árvore, pressentiu que estava sendo perseguida, ficou de costas para o tronco. Após cessarem os uivos, foi acometida por um forte golpe na parte lateral direita de cabeça, sentiu seu sangue escorrer pelo pescoço, pegajoso entre seus cabelos. Não havia desmaiado, conseguiu se virar. Reconheceu seu agressor na mesma hora, era seu marido. Olhos injetados de sangue, sentia até o cheiro forte de álcool. Quando ele se lançou para mais uma investida sobre ela um grande cachorro branco saltou sabe-se lá de onde atacando seu ofensor.

Foi aí que acordou assustada com a batida forte da porta de sua casa, mas o medo não passaria tão rapidamente, seu marido havia chegado e tão logo a viu deitada no sofá, irrompeu um sem número de xingamentos e injúrias contra ela e se lançou a estapeá-la.

– Sua vagabunda, onde está o jantar, eu boto comida nesta casa não é pra você ficar só comendo e dormindo. Quem esteve aqui? Por que dois pratos estão sujos? Sua puta sem vergonha, quem esteve aqui? – gritou puxando ela pelos braços – Eu vou matar você se não abrir o bico sua piranha!

– Foi um cachorro que entrou aqui, eu não sei onde ele foi, por favor acredite em mim!

– Um cachorro sua sem vergonha mentirosa! Onde está esse animal então?

– Não sei, deve ter saído enquanto eu dormia.

Ele empurrou-a contra a parede, ela bateu fortemente com a cabeça e caiu sentada de costas para a parede. Sentiu a mesma sensação que teve no sonho ao perceber o sangue escorrendo e se misturando ao seu cabelo.  Quando ele se preparou para desferir um murro bem na direção do rosto da mulher um rosnado se fez ouvir. Ele parou o movimento, olhou para a cozinha, de onde vinha o rosnado e viu o cão de que a esposa lhe falara. Tentou não fazer movimentos muito bruscos, apesar de estar bêbado sabia que corria perigo agora. O bicho rosnou mais auto e se lançou latindo sobre o ofensor da mulher. Derrubou aquele homem de pouco mais de um metro e oitenta e cinco com sua arremetida.

A mulher se desesperou com aquele cenário de violência, o animal tinha se lançado ao pescoço do homem e dilacerava a garganta daquele infeliz. Este tentava a todo custo se desvencilhar da fera iracunda. A mulher com medo correu até o andar de cima, entrou em seu quarto e se trancou. O barulho da peleja no andar de baixo era grande ainda. Colocou as mãos sobre os ouvidos pra tentar não escutar. Até que tudo silenciou.
  
Ela olhou pela janela e viu que a chuva ainda caia com força naquela noite. O sangue de sua cabeça havia coagulado e fez seu cabelo grudar em seu pescoço. Sua cabeça doía muito agora. Resolveu sair e olhar o que havia acontecido. Lentamente abriu a porta e se dirigiu as escadas, desceu-as vagarosamente. O corpo de seu marido estava imóvel. Um ferimento grave na altura da jugular por onde saíra muito sangue formou um circulo rubro em torno da cabeça, dando-lhe um aspecto de um santo, com auréola vermelha. Não viu onde estava o cachorro, começou a procurar o seu defensor, mas não o encontrou dentro de casa. Foi até a porta, muita água da chuva havia entrado por ali, o tapete estava pesado. Foi grande o seu susto quando olhou na direção da porta que dava acesso a rua, a uns dez metros de onde estava e viu um homem muito branco nu parado na chuva observado-a. Ela ficou meio desorientada com aquela visão. Mas de alguma forma entendeu o que havia acontecido. O homem acenou como em despedida e virou as costas e saiu da propriedade daquela mulher.  

Em menos de trinta minutos aquela mulher tentava formular explicações plausíveis para o chefe de policia. Sabia que ela era a principal suspeita de ter cometido aquele crime bárbaro até o momento. Mas pensou neste paradoxo que se apresentava para ela, pois mesmo que fosse presa, estava livre. Realmente agora estava liberta. Sabia que o horror de sua vida tinha passado e este não consistia em barras de ferro de uma cela. Provaria sua inocência, o legista não titubearia diante das evidências de mordida animal. E ela, ao final, seria eternamente agradecida a um cachorro branco que cruzara em sua história.


2135



– A resistência não vai aguentar muito tempo. Precisamos agir logo, ou não restará nada. Nossa consciência será totalmente extirpada, nossas memórias alteradas, nossa história corrompida. Algo deve ser feito. Não posso deixar tudo acabar assim.

Leonard era um dos poucos humanos que restaram para combater naquela guerra. Não que fossem os últimos humanos. Havia outros, mas não se importavam com o conflito. Os outros estavam entorpecidos. Escolheram há algum tempo não se importar com o problema dos outros. Gostavam do novo modo de vida, muito apropriado para seu tempo, alguns diziam. Se é que ser controlados por máquinas, que deveriam se submeter aos nossos comandos como fora outrora, agora era uma boa maneira de se viver, ou, na verdade, sobreviver.

O ano era 2135. O homem alcançara avanços nos campos na medicina, tecnologia e robótica que seriam inimagináveis há alguns anos atrás. Entretanto, com o aperfeiçoamento da A.I, as coisas perderam o controle. Nossos líderes tiveram que gradativamente se submeter a alguns caprichos das máquinas. Compreensíveis no início. Difíceis de refutar. Os argumentos eram perfeitamente lógicos. Até que, com isso, algumas medidas “protetoras” da humanidade e de todo o planeta foram sendo elaboradas cada vez mais pelas máquinas, e atendidas por nós.

A produção de livros em massa no final do século XX e início do XXI fora completamente freada com o nobre intuito de preservação dos recursos naturais. Essa medida era extremamente relevante e, com o invento do livro digital, supria-se a lacuna. Com o tempo, a produção de livros como conhecíamos teve seu ocaso. Todos os procedimentos eram agora digitalizados, e ninguém se opunha a isso. Era o curso natural da história. De forma alguma poderíamos colocar em risco a segurança de uma vida confortável em nosso planeta por desmatamentos desordenados.

Era uma vez a solidão


João, homem muito sensato, não tomava decisões em sua vida sem antes muito pensar. Para ele, refletir bastante antes de qualquer coisa era quase uma prática religiosa. Não queria jamais tomar decisões erradas na vida e cuidaria para evitar atitudes impetuosas.

Ficava a maior parte de seu tempo livre em seu quarto – espaçoso para ele, mas de fato não precisava. Ele se entregava naquele tempo vago às leituras. Como gostava de ler, passava horas absorto em um livro, virando suas páginas categoricamente. Sua cadeira era confortável e, apesar das horas de leitura, quase não sentia dores de coluna.

Tinha uns trinta e poucos anos, cabelos castanhos bem cortados, olhos também castanhos, nariz aquilino, lábios finos, com um metro e oitenta e apresentando uma compleição física que não atrairia olhares interessados, dado a ausência de músculos grandes. 

Naquela sexta-feira, todos os seus amigos do trabalho o convidaram para sair e curtir um pouco aquela agradável noite quente de verão. Mas ele negava educadamente. Já tinha planejado mais um fim de semana de leituras, televisão e quem sabe, vídeo games. Tinha um daqueles planos de internet, TV a cabo e telefone muito bom, e se entretinha o máximo que podia com essas coisas. Se acostumara a viver sozinho, e estava razoavelmente satisfeito.

segunda-feira, 24 de setembro de 2012

Ao limite


A cena repetia-se naquela necrópole. Todos que trabalhavam ali já haviam se acostumado com esta situação, seja o pessoal da administração, os vigias e, é claro, os coveiros.

Esse dia a rotina não era diferente, várias capelas, um som lamurioso que começava bem cedo e seguia até o fim da tarde, isso quando não velavam o corpo de um dia para o outro, aí aquelas lamúrias e choros se alongariam até o outro dia, dando para os que trabalhavam ali, pelo menos em relação aos sons, a ideia de um círculo vicioso.

– E esse aí como vai Zé Carlos? – disse Zinho.

– Esse aqui é todo fechado, só a foto pra lembrar quem foi o sujeito mesmo, imagina que o nosso amigo aqui, pelo que contou o seu Tobias, foi dilacerado por uma fera, talvez um grande urso ou algo parecido, perto das montanhas lá nos States. Então, ele além de não ter ficado em bom estado depois do seu encontro mortal, ainda demorou um tempo para chegar aqui, o estado da carcaça não deve estar nada bom.

Em outro lugar


Hoje faz dois meses que ele se foi, e eu ainda estou desesperada por isso. Na verdade, não sei como isso foi acontecer, isso é muito injusto, e, apesar de sempre terem me dito que a vida era, de fato, injusta, eu não imaginei que esta arbitrariedade fosse machucar tanto...  Realmente, não sei o que fazer, fico me perguntando por que isso foi acontecer, justo naquele momento.

– Olha pra ela, tá na cara que ela não conseguiu superar o acontecido ainda.

– Acontecido? Cê tá de brincadeira, o marido dela morre daquele jeito, cinco meses depois de ter casado com ela e você diz que foi um acontecido! Foi uma tragédia!

– Tá, entenda como quiser, mas ela, que falava com todo mundo, sempre contava piadas, era divertida, agora não esta tão diferente de um dos figurantes do Walking Dead.

 Chega de besteira vamos tentar falar com ela.

– O que, se tá louca, eu não sei o que falar.

–Vamos só puxar assunto, ela não pode ficar assim a vida toda, e nós aqui do escritório temos que ajudar a ressocializar essa mulher. Vamos!

Aproximaram-se dela e perguntaram:

 – Então Joana, como está aquele processo do Givanildo?

Alguns segundos se passaram depois da indagação.

– Ah, está indo bem sim Silvia. Eu acredito que depois do provimento da sentença em nosso favor, não considerando os fatos típicos apontados na denúncia, eles talvez nem ingressem com recurso.

– Que bom então, sinal de que as coisas estão melhorando aqui no escritório não é mesmo? – disse Maura.

– Se precisar de alguma ajuda, estiver sobrecarregada com algum processo, enfim, fale com a gente.

– Tudo bem. Eu não preciso de ajuda – pensou Joana – eu preciso é de uma nova vida, uma nova chance, que eu sei, infelizmente não virá.